quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O Computador do Criador

"Na sua infância, durante um dos passeios que fazia com seu pai, Agnes lhe perguntara se ele acreditava em Deus. Ele respondeu:
-Acredito no computador do Criador - a resposta era tão estranha que a criança a guardara. Computador não era a única palavra estranha, Criador também era. Pois o pai não falava nunca de Deus, mas sempre do Criador como se quisesse limitar a importância de Deus unicamente à sua performance como engenheiro. O computador do Criador: mas como um homem poderia comunicar-se com um aparelho? Ela então perguntou ao pai se ele costumava rezar. Ele disse:
-Tanto quanto costumo rezar para Edison quando uma lâmpada queima.
E Agnes pensa: o Criador colocou no computador um disquete com um programa detalhado, e depois foi embora. Que depois de criar o mundo, Deus o tenha deixado à mercê dos homens abandonados e, ao se dirigir a Ele, caem num vazio sem eco, esta idéia não é nova. Mas se ver abandonado pelo Deus de nossos antepassados é uma coisa, e uma outra é ser abandonado pelo inventor divino do comuputador cósmico. Em seu lugar fica um programa que se desenrola implacavelmente em sua ausência, sem que possa mudar o que quer que seja. Programar o computador; isso não quer dizer que o futuro seja planejado em detalhes, nem que "lá em cima" tudo esteja escrito. Por exemplo, o programa não estipulava que em 1815 ocorrece a batalha de Waterloo, nem que os franceses a perdessem, mas apenas que o homem é por natureza agressivo, que a gerra lhe é consubstancial, e que o progresso técnico a tornará cada vez mais atroz. Do ponto de vista do Criador, todo o resto é sem importância, simples jogo de variações e de permutas num programa geral que nada tem a ver com uma antecipação profética do futuro, mas determina apenas o limite das possibilidades; entre esses limites deixa todo o poder ao acaso.
O homem é um projeto do qual pode-se dizer a mesma coisa. Nenhuma Agnes, nenhum Paulo foi planejado num computador, mas apenas um protótipo: o ser humano, tirado em miríades de exemplares que são simples derivados do modelo primitivo, que não tem nenhuma essência individual. Não mais essência individual do que tem um carro saído da fábrica da Renault. A essência do carro tem de ser procurada além desse carro, nos arquivos do construtor. Apenas um número de série distingue um carro do outro. Num exemplar humano, o número é o rosto, esse conjunto de traços acidental é único. Nem o caráter, nem a alma, nem aquilo que chamamos de o eu se distinguem nesse conjunto. Esse rosto apenas numera um exemplar. "

Milan Kundera, A Imortalidade











Não precisa dizer mais nada, tá tudo aí.
Kundera é um gênio, grande parte da minha opinião sobre a vida é influenciada por ele.



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